Esta exposição retrospetiva revela que a investigação da psique e do inconsciente tem sido o fio condutor no trabalho de Luís Miguel de Matos. Em várias obras, Matos procura representar as camadas mais profundas da mente humana, questionando a relação entre a consciência e o inconsciente, e como essas dimensões se manifestam no comportamento, nas emoções e, em última análise, nas nossas relações com o mundo. A presença de arquétipos e símbolos torna-se um instrumento importante de reflexão sobre as nossas psiques coletiva e individual. Os arquétipos, como padrões universais de comportamento e pensamento, representam frequentemente forças que nos moldam e guiam, mas que também nos limitam nas suas obras.
Outras áreas de investigação na prática de Luís Miguel de Matos incluem a performance virtual e os jogos de computador. O artista interessa-se por como as novas tecnologias moldam a experiência humana, influenciando a forma como percecionamos a nós próprios e o mundo ao nosso redor. Ele reflete sobre a realidade digital, a imersão no ciberespaço e a influência da tecnologia na psique, nas relações sociais, na autorrepresentação e na construção da identidade.
Outra dimensão presente no trabalho de Matos é a relação entre o corpo e a cidade. Esta investigação materializa-se através do estudo do parkour—uma disciplina que transforma a cidade num espaço de possibilidades e desafios. O parkour explora os limites do corpo humano em interação com a arquitetura, funcionando como uma metáfora para as limitações e liberdades dos seres humanos na sociedade contemporânea. Neste contexto, o corpo torna-se uma ferramenta de resistência, uma forma de desafiar a rigidez das normas e a homogeneização dos espaços urbanos. A cidade, por sua vez, deixa de ser apenas um cenário físico e transforma-se num lugar simbólico, um reflexo das tensões sociais, culturais e pessoais que o indivíduo enfrenta.
Na nova série de trabalhos "Sonhos e Malandrices," Matos adota uma abordagem profundamente pessoal e introspectiva. A pandemia e o isolamento social que marcaram os últimos anos impactaram significativamente a sua prática. O artista observa que, após este período de reclusão, os seus sonhos tornaram-se mais vívidos, oferecendo-lhe um novo ponto de partida para o seu trabalho. Esta série de desenhos é o resultado da sua pesquisa sobre imagens oníricas e do esforço para interpretar o conteúdo simbólico que emerge desses sonhos.
Estes desenhos funcionam como uma espécie de diagrama psíquico—registos gráficos das imagens e símbolos que o artista capta dos seus sonhos logo após acordar. Cada desenho é uma tentativa de externalizar o que muitas vezes permanece intangível e enigmático no inconsciente. A série reflete sobre os processos envolvidos na construção da psique humana, desde a relação entre as figuras e forças que habitam o inconsciente até às dinâmicas de desejos, traumas e memórias que se entrelaçam no mundo dos sonhos.
No entanto, os temas desenvolvidos por Matos não se limitam à exploração do inconsciente individual. Ele também reflete sobre questões sociais e políticas que ocupam a sua mente, mas que escapam à sua plena compreensão, tal como os próprios sonhos. Entre esses temas estão a sobreexploração dos recursos naturais e as preocupações ambientais—um alerta sobre as consequências da destruição ambiental e a nossa desconexão com a natureza. O artista também aborda a história e a resistência dos povos indígenas das Américas, examinando a sua relação com o capitalismo expansivo e as estruturas de poder que os têm dominado e continuam a dominar essas culturas.
Matos explora hierarquias de poder e relações institucionais, refletindo sobre o papel do indivíduo dentro de sistemas sociais e políticos que frequentemente o marginalizam.
Para Matos, a abordagem dos sonhos vai além da psicologia. Embora se inspire na psicologia junguiana para interpretar os símbolos e arquétipos que emergem nos sonhos, ele também os vê como revelações místicas—um portal para o transcendente, como defendem algumas tradições xamânicas. Nesse sentido, os sonhos não são apenas projeções de conteúdos inconscientes, mas também um meio de conexão com o sagrado e o divino. Para Matos, os sonhos representam uma linguagem simbólica—um caminho para o mistério e a transcendência, permitindo o contacto com forças superiores que moldam o destino humano.
A exposição "Sonhos e Malandrices" oferece, assim, uma reflexão profunda sobre as interseções entre a psique humana, o inconsciente coletivo, a sociedade e o meio ambiente. Ao explorar o campo dos sonhos, das imagens oníricas, da simbologia e das questões sociais e ambientais, o artista cria um espaço de contemplação que transcende o pessoal e o político, o material e o espiritual. Ele convida-nos a olhar para dentro e a enfrentar, com coragem e clareza, as imagens e os símbolos que emergem do nosso inconsciente, ao mesmo tempo que nos desafia a refletir sobre o papel que desempenhamos no mundo e no futuro coletivo.
Assim, a exposição torna-se um convite para explorar não apenas o inconsciente individual, mas também o inconsciente coletivo, proporcionando uma experiência simultaneamente pessoal, política e espiritualmente transformadora.
English version:
This retrospective exhibition reveals that the research of the psyche and the unconscious has been the main guideline in Luís Miguel de Matos's work. In several pieces, Matos seeks to represent the deeper layers of the human mind—questioning the relationship between consciousness and the unconscious, and how these dimensions manifest themselves in behavior, emotions, and, ultimately, in our relationships with the world. The presence of archetypes and symbols becomes an important instrument of reflection concerning our collective and individual psyches. Archetypes, being universal patterns of behavior and thought, often represent forces that shape and guide us but also constrain us in his works.
Other areas of investigation in Luís Miguel de Matos's practice are virtual performance and computer games. The artist is interested in how new technologies shape human experience, influence how we perceive ourselves and the world. He reflects on digital reality, immersion in cyberspace, and the influence of technology on the psyche, social relationships, self-representation, and identity construction.
Another dimension in Matos's work is the relationship between the body and the city. This investigation is materialized through research into parkour—a discipline that transforms the city into a space of possibilities and challenges. Parkour explores the limits of the human body in interaction with architecture, it serves as a metaphor for the limitations and freedoms of human beings in contemporary society. In this context, the body becomes a tool of resistance, a way to challenge the rigidity of norms and the homogenization of urban spaces. The city, in turn, ceases to be just a physical setting and becomes a symbolic place, a reflection of the social, cultural, and personal tensions that the individual faces.
In the new series of works "Dreams and Trickery," Matos adopts a deeply personal and introspective approach. The pandemic and the social isolation that marked the last few years significantly impacted his practice. The artist observes that after this period of seclusion, his dreams became more vivid, offering him a new starting point for his work. This series of drawings is the result of his research into dream images and his effort to interpret the symbolic content emerging from these dreams.
These drawings serve as a kind of psychic diagram—graphic records of the images and symbols the artist captures from his dreams shortly after waking. Each drawing is an attempt to externalize what often remains intangible and enigmatic in the unconscious. The series reflects on the processes involved in constructing the human psyche, from the relationship between figures and forces inhabiting the unconscious to the dynamics of desires, traumas, and memories that intermingle in the dream world.
However, the themes Matos develops are not confined to exploring the individual unconscious. He also reflects on social and political issues that occupy his mind but escape his full understanding, much like dreams themselves. Among these themes are the overexploitation of natural resources and environmental concerns—a warning about the consequences of environmental destruction and our disconnection from nature. The artist also addresses the history and resistance of the indigenous peoples of the Americas, examining their relationship to expansive capitalism and the power structures that have dominated and continue to dominate these cultures.
Matos explores hierarchies of power and institutional relationships, reflecting on the role of the individual within social and political systems that often marginalize them.
For Matos, the approach to dreams surpasses the field of psychology. Although he draws inspiration from Jungian psychology to interpret the symbols and archetypes surfacing in dreams, he also views dreams as mystical revelations—a portal to the transcendent, as maintained by some shamanic traditions. Dreams, in this sense, are not merely projections of unconscious content but also a means of connecting with the sacred and the divine. For Matos, dreams represent a symbolic language—a pathway to mystery and transcendence, allowing contact with higher forces that shape human destiny.
The exhibition "Dreams and Trickery" provides a profound reflection on the intersections of the human psyche, the collective unconscious, society, and the natural environment. By exploring the realm of dreams, dream images, symbolism, and social and environmental issues, the artist creates a space for contemplation that transcends the personal and political, the material and the spiritual. He invites us to turn inward and face, with courage and clarity, the images and symbols emerging from our unconscious, while simultaneously challenging us to reflect on our role in the world and our collective future.
The exhibition thus becomes an invitation to explore not only the individual unconscious but also the collective unconscious, offering an experience that is at once personal, political, and spiritually transformative.
Anamnese "A coragem para participar enquanto mantenho a minha individualidade como solução para a ansiedade."
Ao estar presente na minha primeira exposição retrospectiva individual, cheguei à compreensão de que tenho explorado soluções para ansiedades existenciais, morais e espirituais.
A ansiedade existencial, o medo abrangente da morte e do niilismo num mundo vasto e indiferente, encontra a sua solução corajosa na figura do Cavaleiro da Fé, conforme descrito por Kierkegaard. O salto inabalável do Cavaleiro para o desconhecido — um ato de fé apesar da incerteza — encarna a coragem de enfrentar o vazio existencial com crença, escolhendo viver plenamente perante a absurdidade inerente da vida. Este salto não é uma negação do medo, mas antes uma aceitação dele, reconhecendo que o significado não é dado, mas escolhido.
A ansiedade moral, a tensão entre a identidade pessoal e o julgamento social, é abordada através das figuras do Bardo — o espaço liminar entre a vida e a morte no budismo tibetano. À medida que a alma atravessa o Bardo, ela encontra uma série de figuras, causando angústia ou apontando para a iluminação. A solução corajosa aqui não é uma simples evitação dessas figuras, mas uma navegação ativa através delas, confrontando as próprias escolhas sem fugir das consequências. Cada figura torna-se uma oportunidade de crescimento e transformação, enquanto a alma enfrenta os seus próprios dilemas éticos na busca pela libertação.
Por fim, a ansiedade espiritual, esse estado de inquietação causado pelo silêncio de um Deus ausente, encontra uma resposta corajosa na procura do amor, tal como revelado na poesia mística de William Blake e nas iluminuras da tradição persa. Para Blake, o amor é uma força que transcende o vazio e desafia o silêncio. Ele o descreve como um fogo intenso que consome e ilumina, guiando a alma em sua busca por comunhão com o divino. Nesse anseio, a coragem do buscador é provada: o silêncio não é apenas um obstáculo, mas o terreno fértil onde o amor cresce, transformando a ausência em uma busca fervorosa pela verdade eterna.
Nas iluminuras persas, a mesma coragem se revela na representação do amor como a resposta sublime ao mistério divino. O amor é visto como uma força irresistível que desafia a compreensão, uma atração por algo maior que o mundo material pode oferecer. As figuras e símbolos dessas obras não apenas expressam a beleza do divino, mas também narram o ato de entrega total ao desconhecido. É a coragem de seguir adiante, de buscar o invisível e ouvir o inaudível, que transforma o silêncio de Deus em uma jornada de profunda significação.
Em ambas as tradições, o amor não é apenas a solução, mas a essência do enfrentamento da ansiedade espiritual. Ele é o impulso que converte o vazio em movimento, o silêncio em linguagem e a ausência em presença. É por meio dessa procura corajosa que o buscador descobre que o amor, em sua plenitude, não apenas preenche o silêncio, mas o transcende, oferecendo uma união com o divino que dá sentido à inquietação inicial.
English version:
Anamnesis "The courage to participate while maintaining my individuality as a solution to anxiety"
By being present at my first solo retrospective exhibition, I came to the understanding that I have been exploring solutions to existential, moral, and spiritual anxieties.
Existential anxiety, the pervasive fear of death and meaninglessness in a vast and indifferent world, finds its courageous solution in the figure of the Knight of Faith, as described by Kierkegaard. The Knight’s unwavering leap into the unknown—an act of faith despite uncertainty—embodies the courage to face the existential void with belief, choosing to live fully in the face of life's inherent absurdity. This leap is not a denial of fear, but rather an embrace of it, acknowledging that meaning is not given but chosen.
Moral anxiety, the tension between personal identity and social judgement, is addressed through the figures of the Bardo—the liminal space between life and death in Tibetan Buddhism. As the soul crosses the Bardo, It faces a range of figures, causing distress or pointing to enlightenment. The courageous solution here is not a simple avoidance of these figures, but an active navigation through them, confronting one’s own choices without fleeing from the consequences. Each figure becomes an opportunity for growth and transformation, as the soul faces its own ethical dilemmas in the quest for liberation.
Finally, spiritual anxiety, this state of restlessness caused by the silence of an absent God, finds a courageous response in the pursuit of love, as revealed in the mystical poetry of William Blake and the illuminated art of the Persian tradition. For Blake, love is a force that transcends emptiness and challenges silence. He describes it as an intense fire that consumes and illuminates, guiding the soul in its quest for communion with the divine. In this longing, the seeker’s courage is tested: silence is not merely an obstacle, but the fertile ground where love grows, transforming absence into a fervent search for eternal truth.
In Persian illuminations, the same courage is manifested in the depiction of love as the sublime answer to divine mystery. Love is portrayed as an irresistible force that defies understanding, an attraction to something greater than what the material world can offer. The figures and symbols in these works not only express the beauty of the divine but also narrate the act of total surrender to the unknown. It is the courage to press on, to seek the invisible and hear the inaudible, that transforms God’s silence into a journey of profound meaning.
In both traditions, love is not merely the solution but the essence of confronting spiritual anxiety. It is the driving force that turns emptiness into motion, silence into language, and absence into presence. Through this courageous search, the seeker discovers that love, in its fullness, not only fills the silence but transcends it, offering a union with the divine that gives meaning to the initial unrest.
Conclusão
A semiótica de Umberto Eco e os arquétipos de Carl Jung sugerem que tanto a memória pessoal como a colectiva moldam a forma como interpretamos o mundo através de símbolos. Os arquétipos oferecem uma linguagem universal da experiência humana, enquanto a semiótica proporciona um método para decodificar e compreender como esses símbolos são transmitidos e transformados através das culturas e do tempo.
.
Conclusion
Umberto Eco’s semiotics and Carl Jung’s archetypes suggest that both personal and collective memory shape how we interpret the world through symbols. Archetypes provide a universal language of human experience, while semiotics offers a method to decode and understand how these symbols are transmitted and transformed across cultures and time.